Palavra de rei (e general) é, claro, palavra… honrada!

O presidente do MPLA e ex-chefe de Estado angolano durante 38 anos sem nunca ter sido nominalmente eleito, José Eduardo dos Santos, confirmou hoje que deixa a vida política em 2018 por vontade própria, argumentando que “tudo o que tem um começo tem um fim”.

A posição foi transmitida hoje, em Luanda, no discurso de abertura da segunda sessão extraordinária do Comité Central do MPLA, partido que José Eduardo dos Santos lidera desde 1979 e que está no poder desde 1975, recordando que em 2016 tinha já anunciado a vontade de deixar a vida política.

Com o congresso extraordinário que deverá eleger João Lourenço, Presidente da República, como novo presidente do MPLA, previsto para Setembro, José Eduardo dos Santos fez hoje questão de sublinhar que esse passo resulta da sua vontade de “abandonar a vida política no ano de 2018”, apesar de o “mandato regular” só terminar em 2021.

“Na altura recordo-me de ter dito, em linhas gerais, aqui nesta sala, que tudo o que tem um começo tem um fim, porque é assim a dialéctica da vida. Mas na verdade, a vida do nosso partido tem um ciclo que termina e recomeça-se assim a outra fase da sua existência”, apontou José Eduardo dos Santos.

O MPLA aprovou a 27 de Abril a realização de um congresso extraordinário na primeira quinzena de Setembro deste ano e a candidatura de João Lourenço ao cargo de presidente do partido, ocupado desde 1979 por José Eduardo dos Santos. Desta forma, João Lourenço “deixa” de ser Presidente de todos os angolanos assumindo, sem margem para dúvidas, sê-lo dos angolanos do MPLA.

“Esta é a transição que todos desejamos, que se processe de forma pacífica, normal, natural, sem quaisquer sobressaltos, demonstrando-se assim a maturidade política do MPLA, com um partido com mais de 60 anos de existência que soube sempre superar momentos difíceis, congregar os seus militantes, mobilizar o povo e manter a sua unidade e coesão para alcançar as vitórias mais retumbantes da história moderna de Angola”, disse hoje José Eduardo dos Santos.

“Soube sempre superar momentos difíceis, congregar os seus militantes, mobilizar o povo e manter a sua unidade e coesão”? É verdade. Ou, por sinal, não estivéssemos a dois dias do 27 de Maio, data em que em 1977 milhares e milhares de angolanos do MPLA forram massacrados pelo MPLA. Que estranha forma de “mobilizar o povo e manter a unidade e a coesão”…

O líder do partido, de 75 anos e que entre 1979 e 2017 foi Presidente da República e Titular d o Poder Executivo, apelou na mesma intervenção à mobilização das estruturas do partido, militantes, simpatizantes e amigos para a preparação do congresso de Setembro.

“O partido deve saber reter tudo o que fez de positivo e lhe permitiu chegar à fase em que nos encontramos e estabelecer novos objectivos para os seus militantes, visando materializar os ideais proclamados pelo MPLA desde a sua fundação”, alertou ainda.

A 16 de Março, no discurso de abertura da 5.ª sessão ordinária do Comité Central do MPLA, realizado em Luanda, José Eduardo dos Santos propôs a realização de um congresso extraordinário para Dezembro deste ano ou Abril de 2019.

Durante a intervenção, José Eduardo dos Santos, que foi chefe de Estado em Angola durante 38 anos e não concorreu às eleições gerais de Agosto passado, recordou que se comprometeu a envolver-se pessoalmente no grupo de trabalho que ao longo de 2018 vai “preparar a estratégia” do MPLA para as primeiras eleições autárquicas em Angola.

“Assim, recomendo, por ser mais prudente, que a realização do congresso extraordinário do partido, que vai resolver a liderança do MPLA, seja em Dezembro de 2018 ou Abril de 2019”, disse, sem adiantar mais pormenores sobre este processo.

Contudo, a proposta não terá merecido o consenso dos militantes, tendo o comunicado final da mesma reunião informado a realização, este ano, de duas reuniões de reflexão sobre a proposta apresentada, a primeira, em Abril – realizada 27 de Abril -, pelo bureau político e a segunda, em Maio, pelo Comité Central.

No dia seguinte, o porta-voz do MPLA, Norberto Garcia, chegou a negar que a proposta apresentada pelo líder do partido no poder em Angola, para a realização de um congresso extraordinário sobre a transição da liderança do partido, tivesse sido recusada.

Segundo o secretário para a Informação do bureau político do MPLA, não houve rejeição da proposta do líder, mas sim “um melhoramento” da mesma: “Estamos a evoluir positivamente, estamos a trabalhar com bastante harmonia e coesão. É evidente que há situações em sede das quais poderá haver uma abordagem mais crítica, menos crítica, o que é normal, estamos em democracia e é isso que nós queremos, um partido cada vez mais democrático, cada vez mais aberto”.

Nos últimos tempos têm crescido os comentários na sociedade angolana sobre a existência de uma suposta bicefalia entre o chefe de Estado angolano e vice-presidente do MPLA, João Lourenço, e o líder do partido, José Eduardo dos Santos, em que se incluem críticas internas sobre a situação.

A luta continua?

Perante o estertor do seu regime, José Eduardo dos Santos tentou nos últimos anos mantê-lo vivo. E conseguiu. Por um lado escolhendo João Lourenço para seu sucessor, por outro declarando ”guerra” a Portugal.

A acusação de corrupção feita pelo Ministério Público de Portugal ao vice-Presidente da República, Manuel Vicente, foi uma excelente botija de oxigénio. Esta “medicação” foi testada numa dose experimental com o impedimento da visita da ministra portuguesa da Justiça, Francisca Van Dúnem, e terá dado – segundo os kimbandas do reino – excelentes resultados.

Através desta metodologia terapêutica, José Eduardo dos Santos justificou tudo o que lhe apeteceu, numa espécie de reedição (revista e adaptada) do que fizera com Jonas Savimbi. Ou seja, disse e provou aos seus acólitos que para pôr um fim definitivo aos resquícios do colonialismo português, o MPLA terá de ser poder durante muitas mais décadas.

De facto, quem melhor do que José Eduardo dos Santos primeiro e depois João Lourenço para acabar com a “cumplicidade criminosa” de alguns “sectores de Portugal” na guerra civil e com a “incompreensão absurda” portuguesa e europeia quanto ao seu regime?

“Com a crise do petróleo o país foi devastado. Lamentavelmente, com a cumplicidade criminosa de sectores em Portugal e na Europa que preferem continuar a ter uma Angola fraca a uma Angola igual entre as nações do Mundo, fomos obrigados a cortar relações”, dirão os “historiadores” do regime.

José Eduardo dos Santos recordará que, em 2002, o país precisava do apoio dos doadores europeus, mas que mais uma vez Portugal se pôs de fora, razão pela qual o regime teve de apostar numa parceria com a China, para a reconstrução nacional.

“As autoridades angolanas precisavam do cumprimento das promessas feitas pelos doadores internacionais em Bruxelas, mas essas foram-lhes recusadas pelos mesmos que criticam hoje o facto de Angola querer fazer o seu caminho sozinha. Quando as portas são fechadas — como hoje volta a acontecer — como não seguir pela alternativa que sobra, a de caminhar caminhando”, questionava sua majestade o rei emérito.

“Hoje as atenções estão viradas para o processo de reforço das instituições do Estado democrático de direito e de diversificação económica. Os angolanos estão outra vez a arregaçar as mangas, mas novamente contam com a incompreensão absurda de Portugal e da União Europeia”, disse José Eduardo dos Santos e repetirá João Lourenço.

“Os dirigentes europeus não se coíbem de mentir aos seus próprios povos sobre a realidade angolana e afirmam abertamente que pugnam pelo isolamento internacional do Governo angolano, como se houvesse uma alternativa ao actual poder em Angola que não fosse mais um aventureirismo político”, explicará José Eduardo dos Santos nas suas memótias.

E tem razão, reconheça-se. Quando se tem um “querido líder” que foi “escolhido de Deus”, que tem poderes divinos, que é o mais alto representante de Deus em (pelo menos) Angola, que está muito, mas muito mesmo, acima dos seus pares (caso de Nelson Mandela), que só tem rivais – embora a grande distância – como Teodoro Obiang ou Kim Jong-un, a alternativa teria de ser o João mais parecido com o José. De apelido Lourenço.

Importa, contudo, não esquecer que a vitória por KO do MPLA a Portugal foi obra de José Eduardo dos Santos. O seu Pravda privativo, conhecido como “Jornal de Angola”, publica o comunicado do MPLA em que se critica Portugal, afirmando que “custa ver tanta falta de vergonha”. Falta de vergonha que tinha a ver com a acusação da Justiça portuguesa contra o impoluto, virgem e honorável vice-presidente angolano, Manuel Vicente.

“A maneira leviana como as autoridades portuguesas ‘permitiram’ a fuga de informação que levou para a imprensa lusa esta ‘notícia’, é a confirmação daquilo que aqui já havia sido dito sobre a existência de uma campanha internacional especialmente orquestrada para denegrir a imagem de Angola e dos seus principais dirigentes neste ano de eleições”, lê-se num artigo que Eduardo dos Santos mandou publicar no Pravda.

“Apesar de estarmos preparados para isso, a verdade é que nos custa ver tanta falta de vergonha, sobretudo vinda da parte daqueles que se dizem nossos amigos”, dizia um comunicado do MPLA, versão artigo de jornal. Esclareça-se que quando escrevem “nossos amigos” se referem aos amigos do regime, do MPLA, e não dos angolanos.

Folha 8 com Lusa

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